A castanha do cerrado hoje sustenta a fama de afrodisíaco e ganha mercado
Revista Terra da Gente – Valdemar Sibinelli
Há pouco mais de uma década, o ‘viagra do Cerrado’ se mantinha restrito aos pastos, disputado entre o gado e a fauna silvestre, além das crianças, que o comiam escondido. Antes, só o gado, animais silvestres, índios e crianças desobedientes comiam. Hoje é matériaprima para dezenas de produtos, artesanais e industrializados, que chegam até a Alemanha. E opção de trabalho e renda para muitas comunidades na exploração ambientalmente sustentável. O fruto desconhecido na maioria das capitais e em franca ascensão nos mercados do Cerrado brasileiro, de onde é nativo, é o baru (Dipteryx alata), também conhecido como cambaru, cumaru, barujó ou castanha-de-ferro.
Além do valor culinário, a ‘castanha do Cerrado’ tem valor medicinal, em algumas comunidades é usada contra reumatismo e como reguladora da menstruação, mesmo sem comprovação científica. A fama mais comum, em todas as regiões, é claro, a de afrodisíaco. Pode ser pelo gosto semelhante ao do amendoim — os dois são da família das leguminosas. Certo, mesmo, é que o baru é poderoso revigorante, graças às suas propriedades nutricionais.
Análises realizadas pelo Instituto Adolfo Lutz, de São Paulo, e pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) mostram que a castanha do baru é rica em fósforo, potássio, cálcio, magnésio, zinco e ferro; em ácidos graxos essenciais e em vitamina E, aquela ‘anti-envelhecimento’.
Os teores desses nutrientes no baru superam os da soja, da castanha- de-caju e da castanha-do-Brasil. Tantas propriedades, mais a influência psicológica da fama, justificam o apelido de ‘viagra do Cerrado’. Diz-se, até, que na época da safra, de julho a outubro, aumenta o número de mulheres que engravidam.
A fama é recente, já que por muito tempo o baru ficou restrito aos pastos. Bois e vacas lambem a polpa adocicada, disputando com animais silvestres os frutos caídos do baruzeiro. Sombra boa e fruta fresca justamente na dura época da estiagem. Para os índios Xavantes, de Mato Grosso, o baru era fonte de proteína garantida durante as jornadas de caça longe da aldeia.
Para as crianças da roça, era o ‘baru-barata’ ou ‘coquinho-barata’, cuja casca dura, lenhosa, era quebrada a pedradas para se separar a polpa da semente (a castanha). “Dava um trabalho danado para tirar a semente; o fruto levava muitas pedradas e a castanha saía sempre esmagada. Não era gostoso, mas valia a diversão”, conta Cirley Motta, secretária do Centro de Estudos e Exploração Sustentável do Cerrado (Cenesc). Dependendo da quantidade ingerida, o fruto ‘remoso’ (a castanha crua) dá dor de barriga e ‘bereba’. Por isso, as crianças comiam o ‘fruto proibido’ escondidas dos pais. Os goianos consideram o baru ‘comida quente’.
O fruto — e sua castanha — começou a deixar de ser vilão entre 1996 e 1997, quando, no povoado de Bom Jesus, em Pirenópolis, Goiás, o artesão Edmilson Vasconcelos resolveu torrar a amêndoa e oferecer, como tira-gosto, primeiro aos amigos e depois em encontros e reuniões, a pedidos. Outros moradores aproveitaram o sucesso da nova iguaria e passaram a coletar o fruto para aproveitamento da semente, uma alternativa à derrubada da árvore para uso da madeira. O principal problema era o mesmo das crianças: a dificuldade para quebrar a casca sem esmagar a semente.
Veio então o ‘avanço tecnológico’ capaz de assegurar viabilidade econômica e escala de mercado ao consumo do baru: o então técnico e hoje presidente do Centro de Tecnologia Agroecológica de Pequenos Agricultores (Agrotec), de Diorama, Goiás, Vanderlei de Castro, criou uma espécie de guilhotina com a adaptação de uma foice e uma alavanca num toco de madeira: o ‘quebrador de baru’.
A castanha torrada passou a ser vendida, com sucesso, no comércio, nas pousadas e em acampamentos de turistas. “A castanha de baru torrada atende tanto a população rural, como fonte de proteína para combate à fome, quanto os turistas em suas caminhadas ecológicas por Pirenópolis, e em especial os vegetarianos e os adeptos de uma alimentação natural e saudável”, garante o zootecnista Luís Carrazza, que implantou naquele município o projeto de Desenvolvimento Sustentável na Exploração do Baru, da Fundação Pró-Natureza (Funatura) e Cenesc.
Com apoios e parcerias de órgãos de governo e organizações não-governamentais, o Projeto Baru aglutinou extrativistas, agricultores familiares, ambientalistas e pesquisadores no levantamento dos problemas e na busca de soluções comuns. Depois do ‘cortador’, o segundo avanço tecnológico que viabilizou o aproveitamento em escala industrial do baru em Pirenópolis foi a implantação, em 2004, de uma unidade de processamento integral.
A experiência pioneira de Pirenópolis então se espalhou por outros municípios de Goiás e de outros Estados produtores. No Mato Grosso do Sul, onde o fruto é mais conhecido por cumbaru, as famílias do assentamento rural Andalucia, em Noiaque, produzem de forma artesanal pães, bolos, biscoitos e doces, para uso próprio e venda a comerciantes. Em parceria com outro grupo de trabalho comunitário, de Diorama, Goiás, os assentados já fizeram até uma pequena exportação para Alemanha de produtos derivados do baru.
O objetivo agora é fornecer os produtos para incremento da merenda escolar, principalmente nas escolas dos assentamentos, explica a bióloga Rosane Bastos, assessora técnica do Centro de Produção, Pesquisa e Capacitação do Cerrado (Ceppec), fundado pelos próprios assentados. Segundo Rosane, “isso não só é importante do ponto de vista econômico, como também para difundir a importância da conservação dessa espécie que pode gerar uma infinidade de produtos”.
A matéria-prima vem dos três mil baruzeiros do próprio Assentamento e o extrativismo é controlado. As famílias não cortam mais o pé para vender a madeira, muitas já plantam sementes e não colhem todos os frutos. Parte deles fica para os animais se alimentarem com a polpa e dispersarem a semente. Os assentados se conscientizaram de que esses cuidados ambientais são necessários para a concretização dos planos de profissionalização das famílias, com atração de investimentos e parceiros. O Ceppec agora planeja envolver outros assentamentos na criação de um Corredor do Extrativismo para ganhar escala de mercado e tornar o baru um produto forte no mercado.
Este é o objetivo também do Projeto Baru, desenvolvido pelo Centro de Desenvolvimento Agroecológico do Cerrado (Cedac), numa área que é uma triste amostra do que acontece em 80% do Cerrado brasileiro: um cenário devastado pelo cultivo da soja e pela agropecuária. O Projeto tem sede na cidade goiana de Caldazinha, onde está a unidade de beneficiamento. Envolve diretamente 550 famílias de 20 municípios de Goiás e Minas Gerais. Os produtos derivados do baru são vendidos pelos próprios agroextrativistas, participantes da Rede de Comercialização Solidária. E a farinha de baru é utilizada em algumas escolas de Goiânia.
A matéria-prima ainda depende do extrativismo sustentável, mas os agricultores começam a colher os primeiros frutos do plantio feito há cinco anos, em parceria com o Programa Nacional de Florestas. “Com a estruturação da cadeia sócio-produtiva do baru, os agroextrativistas buscam diversificar seus sistemas de produção em áreas de pastagens, implantando quebra-ventos e sistemas agroflorestais”, explica a agrônoma Alessandra Karla da Silva, coordenadora do Cedac.
O extrativismo sustentável é uma preocupação comum a todos que exploram comercialmente o baru. O plantio é controlado, para evitar a monocultura. A Embrapa Cerrados produz mudas selecionadas para garantir a qualidade do reflorestamento. A botânica Sueli Matiko Sano, doutora em Ecologia, explica que o baruzeiro é uma árvore indicada para reflorestamentos “porque é uma espécie-chave, isto é, muitas espécies se alimentam dos seus frutos, no período de pouca oferta de alimentos”. Além disso, a grande produção de folhas beneficia a ciclagem de nutrientes e a formação de matéria orgânica no solo. E a madeira, de ótima qualidade, contribui com o seqüestro de carbono.
Apesar dessas iniciativas positivas, o baruzeiro é uma espécie ameaçada pelas mesmas causas da devastação acelerada do Cerrado: desmatamento para extração de madeira, expansão de soja e de outras monoculturas de grãos e formação de pastagens. Mas fazendeiros e agricultores já percebem, ‘na ponta do lápis’, que o baruzeiro vale mais em pé do que derrubado. “No momento, explorar o fruto, mantendo a árvore em pé, é muito mais interessante, pois não há necessidade de grande capital para a produção”, explica a pesquisadora Sueli Sano.
Para o zootecnista Luís Carrazza, assessor de projetos de desenvolvimento regional sustentável em todo o Cerrado, a ‘descoberta’ do baru pode ajudar a salvar da devastação o bioma que ocupa um quarto do território nacional: “Não é preciso derrubar para ter retorno econômico. E, como o baru, outros frutos típicos também podem gerar renda. É a valorização do Cerrado em pé”.
Do pasto ao pesto, para tudo e para todos
A árvore frondosa, de até 25 metros de altura, com copa densa e arredondada, dá ótima sombra para o gado até no período da seca. Da polpa se fazem ração animal e farinha. E também se extrai um óleo comestível, de excelente qualidade, insaturado, que previne o entupimento das artérias coronárias, a exemplo do azeite puro de oliva. Outro emprego do óleo do baru é como aromatizante para o fumo. A torta das sementes trituradas pode ser aproveitada em granolas, como ração ou em adubo.
A Universidade Federal de Goiás (UFG) estuda o potencial do baru como matéria- prima de biodiesel. A madeira, muito resistente, dentre outras utilidades serve para mourão de cerca. Até o que ia para o lixo agora é aproveitado: em Pirenópolis, os resíduos do baru viraram um carvão de qualidade, com alto poder calorífico, para uso doméstico e industrial. Aprovado na fase experimental, neste ano o carvão de baru começa a ser produzido em escala industrial. Menos lixo no ambiente e mais árvores em pé.
Mas é a semente (castanha ou amêndoa) que está transformando o baru na estrela do Cerrado. O produto mais popular ainda é a castanha torrada, com ou sem sal, vendida em todo o Planalto Central e na região Norte, desde Minas Gerais até a costa atlântica do Maranhão. Em São Paulo, já está numa rede de supermercados.
A versatilidade da castanha e a criatividade das donas de casa transformam o baru em doces, geléias, bombons, paçoca, rapadura, pé-de-moleque e farinha. Mesmo antes de conquistar tanto mercado, o baru despertou a atenção do cozinheiro italiano Gennaro Salvemini, que esteve em Pirenópolis de férias, em 1997, e resolveu ficar no Brasil. Há cinco anos ele mantém, em Goiânia, uma empresa especializada em produtos com ingredientes locais, entre eles a castanha de baru.
Cozida, ela é a base para uma variação do molho pesto. Curtida em álcool de cereais, dá um licor cremoso. Outra versão sofisticada são os crisps, que acompanham o sorvete de cajuzinho-do-Cerrado num lounge de Brasília. Na culinária sofisticada ou na popular, o baru dá asas à imaginação de chefs, cozinheiros e diletantes na cozinha.