Matéria do Globo Rural exibida em 14/11/2010 sobre a produção da cacau da Amazônia Equatoriana por agricultores familiares em sistemas agroflorestais.
“É no sopé da Cordilheira dos Andes que começa a grande, a imensa floresta que chamamos de amazônica.
Hoje, o Globo Rural vai até um dos menores países da América do sul, o Equador, para conhecer um pedaço de sua floresta.
Dentro do grande bioma amazônico, a parte que cabe ao Equador é pequena se comparada com a Amazônia brasileira, a peruana ou a colombiana, por exemplo. Mas para o Equador, a floresta ocupa quase a metade do território.
Como o equador não faz fronteira com o Brasil, em geral sabemos pouco sobre ele. Mas, tirando os picos nevados e os vulcões, temos muita coisa em comum. É o que vamos ver na vida dos agricultores que plantam o cacau que dá um dos melhores chocolates do mundo.”
Chocolate sustentável
Produtores de chocolate fino
Transcrição
Chocolate sustentável
gora, numa reportagem internacional, você vai ver uma Amazônia que nós, brasileiros, praticamente não conhecemos. Nélson Araújo foi ao Equador para mostrar uma interessante experiência de agricultura sustentável com pequenos produtores de cacau.
São agricultores que formaram uma cooperativa e, com a ajuda de ONGs, estão realizando a façanha de exportar não a matéria-prima, o cacau em pó, como o país sempre fez, mas o chocolate pronto.
O Equador é como aquele vizinho que a gente quase nunca vê e de quem pouco se sabe. O povo tem forte influência indígena nos traços e nos costumes, e a geografia é bem
acidentada. Só de vulcões, o país tem mais de 70.
No mapa da América do Sul, assim como o Chile, o Equador não faz fronteira com o Brasil. Estamos separados pelo Peru e pela Colômbia, mas temos uma coisa em comum sobre a qual falamos já, já. Não é a Cordilheira dos Andes, em cujos altos se assenta a capital Quito, cidade muito bonita, a primeira a ser declarada pela ONU como Patrimônio da Humanidade.
E você sabe por que o Equador ganhou esse nome? Nos arredores da capital, encontra-se uma explicação magnífica: há construções que fazem parte de um grande parque chamado “Metade do Mundo”. A alameda central é cheia de bustos, representando os pesquisadores de uma missão francesa que foi para o país em 1736. O objetivo era fazer medições científicas do planeta. A expedição durou nove anos. A torre com uma bola no topo é um monumento ao que eles encontraram: o ponto exato da metade da Terra. Foi a partir de lá que projetaram a linha imaginária do Equador, que quer dizer igualador, que divide um todo em duas partes iguais.
Quem está na metade do mundo pode viver uma experiência interessante. Numa fração de segundo, atravessar a linha equatorial e passar do Hemisfério Sul para o Hemisfério Norte. Voltar ou ficar com um pé em cada lado da Terra.
O complexo em homenagem à missão geodésica é hoje a principal atração turística continental do país, com quase um milhão de visitantes do mundo todo por ano.
Nos museus, nos pavilhões científicos, há muito o que se aprender. Dá para entender porque o país que se chamava Real Audiência de Quito adotou o nome de Equador. E, achando-se a posição certa, é possível ficar com o globo terrestre na palma da mão, como fazem a Stefani Marina e a Marcela Palmilla, amigas de Guayaquil.
A foto, a lembrança imperdível da Metade do Mundo é ao lado da placa indicando que estamos na latitude 000. Essa linha dá a volta ao mundo e corta inclusive uma parte do Norte do Brasil. Macapá, capital do Amapá, também está a 00.
Já São Paulo, localizada na parte de baixo, está na latitude de 23°, hemisfério Sul. No hemisfério Norte, Nova York, se localiza 43° acima. Voltando ao Equador, seguindo o eixo pra direita, em direção a leste, na latitude 00, transpomos a Cordilheira do Andes ao que o Brasil tem em comum com o Equador, apesar da distância e separação: a Floresta Amazônica.
Assim como o Brasil, praticamente a metade do território equatoriano se estende pela Amazônia. Este ponto da maior bacia hidrográfica do mundo é rico em nascentes.
As plantações de cacau do Equador se espalham por várias regiões. A que vamos conhecer fica na parte oriental, já em plena Floresta Amazônica. Os produtores, em sua maioria, são agricultores ribeirinhos. Para visitar uma propriedade, estamos descendo agora o rio Napo, cujas águas vêm da Cordilheira dos Andes para ajudar a formar o nosso Amazonas.
A propriedade nos foi indicada pela associação dos produtores. Fica no município de Tena, a uma hora e meia da cidade. O proprietário Cesar Dahua tinha ficado de nos esperar na beira do rio, mas chegamos com duas horas de atraso. Não encontramos ninguém. Na companhia do agrônomo Carlos Pozo, saímos a procurá-lo. Na palafita, ele não está.
Carlos vasculha nos arredores e volta informando que por ali também ele não está. Que situação, hein? Nestes confins da Amazônia equatoriana, as propriedades não são grandes. Têm em média 50 hectares. Só que é tudo floresta, e cultivo misturado. Tanto que nem usam palavras como roça, lavoura, pomar. Falam mata de cacau. Um olho desacostumado nem vai distinguir os cacaueiros no meio do arvoredo.
Procuramos bastante para lá e para cá e já íamos dando a viagem como perdida quando, finalmente, logramos encontrar o produtor. Outra palavra que não se ouve na região é empregado. A família é que faz tudo. Cesar avoca para si a tarefa de identificar e colher as cápsulas maduras de cacau.
Quem se lembra das grandes fazendas de cacau do Brasil logo entende que aqui é tudo artesanal. Dom Cesar plantou apenas sete hectares, mas a colheita é demorada. “Ah! É praticamente o ano inteiro. Tem um período de frutificação mais intenso que vai de janeiro a agosto. Depois, a produção cai que é quando a gente faz os tratos culturais”, diz.
O tipo de cacau do Equador é chamado de nacional, porque é nativo da Floresta Amazônica daqui, mas foi cruzado com uma variedade que veio da América Central, o que resultou numa diferença de cor e de sabor. O amarelo é mais frutado, e o vermelho é mais floral. “É um privilégio a Natureza nos dar um cacau tão diferenciado como este. Já tentaram plantar em outros lugares, mas não dá com sabor igual ao daqui”, completa o agricultor.
Carlos Pozo é um dos que dão assistência agronômica aos cacaueiros. Cesar segue as regras de produção de uma cooperativa que congrega 850 famílias da cabeceira do rio Napo. “A nossa orientação básica é pra que o agricultor não faça monocultivo”, diz Pozo.
De fato, num lado de um pé de cacau a gente pode ver uma balsa, árvore que passa dos 30 de altura. Do outro, um pé de cedro amazonense. Tem algodão, mandioca, banana, mamão, laranja, e até um coquinho que aqui chamam de morete, o nosso buriti. Pozo lembra que “a diversidade garante a saúde da plantação, pois aumenta a presença dos inimigos naturais do cacau”.
O micro clima úmido da mata de cacau às vezes favorece o surgimento de fungos. Aparecem doenças como a “escova de bruja”, a vassoura de bruxa, que é natural da Amazônia, mas o controle tanto de doenças como de pragas é obrigatoriamente natural, sem agrotóxico. “Sem venenos. Nossa produção se caracteriza por uma produção sã, totalmente orgânica, defendendo a biodiversidade e nossos ecossistemas”, afirma Pozo.
O transporte dos frutos colhidos do ponto de coleta até a casa fica ao encargo da família. Cesar tem uma turma grande: oito filhos, quatro netos. Madalena, a esposa, reúne quem está disponível no fim da tarde para a tarefa. Juntos, fazem também o processamento rudimentar da despolpa. Uns cortam lateralmente a cápsula e outros completam, derrubando os grãos nas vasilhas.
Produtores de chocolate fino
O Equador é o principal exportador de cacau fino do mundo. A cooperativa Kallari, da Amazônia equatoriana, conseguiu entrar num mercado ainda mais exigente, o de chocolate fino, o chamado produto gourmet. Esse chocolate não está à venda no Brasil. Toda a produção vai para as bombonières de luxo da Europa e dos Estados Unidos.
Na manhã seguinte ao dia da coleta, Cesar sobe o rio Napo levando o saco cheio de grãos de cacau. A viagem não é longa, em torno de vinte minutos.
Rio acima há um porto, onde um caminhão da cooperativa vem coletar, melhor dizendo, vem comprar o cacau. É o ponto de reunião de vários cacaueiros ribeirinhos. De cara, chama-nos a atenção ver que o produtor recebe o pagamento na hora. E o dinheiro é o mesmo dos Estados Unidos, o dólar, pois, desde o ano 2000, o Equador adotou como valor corrente a moeda americana. Também é de se estranhar o palavreado que ouvimos durante a pesagem.
Tantos séculos depois da chegada dos espanhóis, o venda dos grãos é feita em quíchua, a língua dos incas. Os incas dominaram boa parte da Cordilheira dos Andes até 1500. Tinham como língua oficial o quíchua, nome do povo pré-histórico que já ocupava a região. Pergunto a Elias Alvarado, diretor da cooperativa, por quê, já que no Equador todo mundo fala espanhol. “O idioma materno desses produtores ribeirinhos é o quíchua. Eles sentem mais confiança quando negociamos assim. Antes, vendiam para os atravessadores que falavam em espanhol e os passava para trás. Agora, sentem-se mais seguros”, diz.
Olha aí: vamos acompanhar agora a pesagem do saco de cacau que Cesar trouxe. “Pata tchucuchunga pitsca” corresponde a 72,5 kg. A um dólar o quilo, dom Cesar recebe US$ 72,50.
Sobra tempo para Cesar porque a cooperativa compra o cacau in natura, desobrigando o produtor das tarefas pré-industriais. Toda a produção é transportada para a sede da cooperativa, que fica nos arredores de Tena. A polpa é despejada em caixotes de madeira no armazém de fermentação. Antes, os produtores é que cuidavam disso. Mas, juntando tudo assim, é possível ter um controle melhor e padronizar o produto. “A finalidade da fermentação é dar maior aroma e sabor ao cacau, que é o que vai diferenciar o nosso chocolate”, diz Pozo.
Carlos Pozo explica que o processo pode durar até uma semana. Os grãos começam com uma temperatura de 23°C, que vai subindo até os 50°C. O embrião da semente morre. Portanto, não há emissão de raízes. E há um momento crucial, que é um segredo que descobriram, em que o cacau começaria a apodrecer, mas é retirado antes. Carlos corta um grão e mostra: as estrias indicam que o inchamento da amêndoa está perfeito.
Terminada a fermentação, o cacau é espalhado em tabuleiros para a secagem. É natural, só com a luz do sol. Mas, como aqui, nunca se sabe quando vai chover, o secador solar tem teto protetor.
As amêndoas são viradas e reviradas até o grau de umidade cair para 6,5%, que é bem baixo. É para evitar que se estraguem, pois, mesmo em condições ideais de armazenamento, a umidade relativa do ar na Amazônia equatoriana é elevada. Com quatro ou cinco dias de sol, o grão fermentado no cacau já está seco, pronto para industrialização.
É numa indústria da capital que acontece a transformação do cacau da cooperativa Kallari. Os grãos são torrados, moídos e cozidos até virarem uma pasta que tem 50% de gordura. A maior parte da manteiga é retirada. Acrescenta-se o açúcar, e a mistura passa, então, por um longo processo de refino.
O cacau colhido pela família de Cesar Dahua e outras de Tena tornou-se o chocolate gourmet mais exportado do Equador. São 300 mil barras por ano para os Estados Unidos e para a Europa. Por coincidência, na fábrica de chocolate em Quito, encontramos dois suíços, o casal Dora Houssein e Louis Houssein, que são degustadores de chocolate há mais de 50 anos.
O casal está aqui para orientar a fabricação do Kallari, que já ganhou até selo de produto orgânico do Departamento de Agricultura americano. “Eu tenho aqui 70% de cacau e me agrada muito. É muito natural e finíssimo”, diz Louis.
Com um aparelhinho, é possível medir a textura do chocolate. É um micrômetro, capaz de avaliar coisas absolutamente pequenas. Imagine: um milímetro dividido por mil. Segundo seu Louis, um chocolate considerado bom tem textura de 25 mícrons. O da Kallari fica abaixo de 20, o que lhe dá uma grande leveza. “Na Suíça, mistura-se o cacau com leite. Mas este é puro. Não leva outras coisas”, completa o degustador.
Quem é que compra esse produto, lá fora? É o que perguntamos ao exportador Fausto Moncayo, da Companhia Equatoriana de Chocolate. “É um consumidor exigente que gosta de conhecer coisas diferentes, experimentar novos sabores e saber a origem do produto que compra”, diz.
Segundo Moncayo, o chocolate gourmet tem um mercado crescente. Está no mesmo trilho, por exemplo, do mercado de vinhos finos onde o consumidor aprecia uvas de variedades diferentes; no requinte dos azeites mais puros; no toque único dos cafés gourmets, que apresentam aromas e sabores exclusivos da região de origem. “Tem gente disposta a pagar mais pela finesse, pela qualidade. Graças a isso, o Equador, que sempre foi um dos principais exportadores de matéria prima, de cacau em pó, agora entra no promissor mercado do chocolate de excelência”, afirma Fausto.
E há um atributo a mais, de grande apelo nos países ricos e que vira até assunto entre quem vai saborear o Kallari: este é um produto amazônico, de origem sustentável, que sai das mãos
de cacaueiros ribeirinhos.
Antes, esse grupo de produtores tinha um nome enorme: Associação dos Pequenos Agricultores de Cacau do Alto Médio Rio Napo do Cantão de Tena. Depois, com orientação mercadológica de uma ONG americana, mudaram o nome, que é uma marca, por trás de uma sabedoria quíchua. “É uma palavra quíchua que, ao mesmo tempo, significa ‘resgate’ e ‘despertar’. Recuperamos o conhecimento dos nossos ancestrais no manejo das florestas, fazendo um cultivo que não agride o ambiente, e projetamos para o futuro uma conservação que garanta a sobrevivência da floresta e de nossos filhos. Por muito tempo, fomos menosprezados: achavam que na Amazônia não se podia produzir nada. Estamos mostrando que aqui se pode fazer uma agricultura sustentável”, afirma Alvarado.
Notável o exemplo que vem desses ribeirinhos que souberam se unir, procurar e aceitar ajuda de fora para que possam continuar aqui, mantendo a floresta, se mantendo, mantendo seus costumes. No dia em que visitamos Cesar, Madalena nos preparou um almoço típico: peixinho do rio Napo, recheado com palmito, assado na folha da bananeira. Foi aí, de sobremesa, que experimentamos pela primeira vez o Kallari, chocolate que desmancha na boca.
O que sente um ribeirinho desses confins da Amazônia equatoriana, sabendo-se autor de uma delícia que vai ser apreciada por um francês, um alemão, até mesmo um suíço? “Me sinto feliz, primeiro, em contribuir para levar tão longe o nome da nossa cooperativa. Segundo, porque agora temos uma renda. Antes, ficava tudo nas mãos do intermediário”, diz Cesar.
Firme no propósito de manter as tradições, Cesar ensina quíchua para os filhos. E é na língua nativa que nos faz uma saudação de despedida. “Eu disse que os brasileiros foram muito bem-vindos à nossa terra. Eu os felicito e agradeço sua visita”, explica.
Madalena também agradece em quíchua. Madalena, Cesar, “pagratio”, obrigado a vocês também.