Reflexões e experiências no cenário da agricultura familiar
por Fabiana Mongeli Peneireiro
Engenheira Agrônoma - MsC em Ciências Florestais na
ESALQ/USP
Escola da Floresta - Rio Branco - AC
email:fmpeneireir@.(tirar_essa_parte).yahoo.com
Educação transcendendo a extensão rural, uso de leguminosas para controlar o mato, tecnologias a mão do produtor, aproveitamento dos recursos locais, o técnico como catalisador de processos de aprendizagem... Todos esses aspectos são comentados como elementos-chave na busca de uma agricultura mais sustentável. A partir de exemplos concretos, o credito rural, da forma como é feito, a partir de projetos apoiados na Revolução Verde, pode ser visto como uma armadilha para o pequeno produtor, que o endivida e gera benefícios diretos apenas as empresas de insumos e não a família rural.
Ao trabalhar com agricultores familiares no estado do Acre, muito tenho aprendido e refletido sobre a realidade da agricultura no nosso pais. É comum encontrarmos agricultores familiares que financiaram sua lavoura e não tem meios de quitar, muitas vezes devido a produção não ter sido satisfatória e também aos altos custos de produção. Ao meu ver, grande parte dos insucessos é resultante do sistema de produção proposto. Os projetos são fundamentados na chamada agricultura moderna, que se resume em monocultivo, adubação química e combate de plantas invasoras e pragas na lavoura. Assim, mais da metade do valor do credito é destinado para insumos como fertilizantes, saquinhos para mudas, sementes e agrotóxicos. O agricultor nem chega a ver o dinheiro porque este vai direto para as lojas agropecuárias. Pouco do dinheiro do credito paga mão-de-obra, mesmo assim, de maneira injusta, porque o valor da mão-de-obra coberta pelo banco é inferior ao preço real pago pelo agricultor a um diarista. Já vi casos de agricultor que financiou lavoura branca e pagou com a produção de laranja que ele mesmo teve idéia de plantar ou com gado. Assim, o financiamento, ao invés de capitalizar o produtor para que fortaleça sua atividade, este acaba se descapitalizando.
Outro caso que presenciei foi uma lavoura de café, cujo desenvolvimento das mudas estava todo desigual, muitas delas atrofiadas, amareladas, e o técnico recomendando mais e mais fertilizantes. Quando fui observar a raiz das plantas, constatei que as mudas tinham sido plantadas a uma profundidade superior a indicada e sua raiz pivotante estava torta. Problemas que poderiam ser resolvidos por simples ajustes técnicos acabam comprometendo a produção e causando endividamento do agricultor.
Um caso muito típico aqui na região do Acre é que o agricultor não “vence combater o mato”. Então, na maioria dos projetos, encontramos a recomendação de herbicidas ou roçadeira. A terra vai ficando cada vez mais degradada, e as gramas rasteiras são beneficiadas com o uso da roçadeira, não contribuindo para o bom desenvolvimento da cultura. Outro problema comum diz respeito a relação com pragas e doenças nas lavouras. Conheço um agricultor que pagou R$ 170,00 em um vidro de inseticida e ate hoje não viu o retorno de seu investimento. É que os projetos de credito prevem o uso do agrotóxico e, portanto, a sua compra antes da implantação da lavoura, sem mesmo saber se haverá ataque do inseto e se este causara dano econômico. E esse mesmo agricultor comentou sobre o mal estar que seu filho sente apos a aplicação de agrotóxicos. Onde trabalhamos, ha uma família quase toda aposentada por problemas de saúde acarretados por agrotóxicos. Eles trabalham com horta. Imaginem o nível de contaminação dos produtos que vendem...
Quando os agricultores não têm mais esperança na atividade agrícola, se espelham nos grandes fazendeiros e pensam que a pecuária pode mudar essa realidade. O que acontece é que um pequeno agricultor, num pedaço reduzido de terra, nas condições do Acre, nunca terá um retorno econômico que um fazendeiro teria com o gado. E o resultado é a degradação do meio, com a perda da biodiversidade, erosão do solo, e o trabalho exaustivo sem retorno econômico. Ele acaba vendendo sua terra e os fazendeiros somam mais terra para ampliar seu latifúndio. Conseqüência: mais uma família foi se refugiar na cidade ou ser mão-de-obra barata de um fazendeiro.
Todo esse contexto que acabo de descrever é uma pequena parte da realidade da agricultura familiar no Acre e acredito que representa uma grande parte da agricultura familiar brasileira. A família de agricultores vai sendo descapitalizada, contaminada, desmotivada, seus recursos naturais vão sendo depauperados e os consumidores acabam obtendo um alimento de qualidade nutricional ruim. Muitos agricultores, desestimulados e endividados acabam tendo que abandonar suas terras e indo para os centros urbanos.
Com essa curta narração quero expor a tese de que, se os agricultores utilizassem seus recursos locais e que se o credito, quando necessário, fosse principalmente para subsidiar sua mão-de-obra antes do primeiro retorno econômico, e não para beneficiar as empresas produtoras de insumos (que muitas vezes descapitaliza o produtor, cria dependência e intoxica o meio, o agricultor e inclusive o consumidor), mais próximos de uma agricultura sustentável estaríamos e o agricultor teria mais saúde, mais capital, mais autonomia. O caminho seria deixar os pacotes tecnológicos e passar a pensar em processos agroecológicos. Alem disso, ao invés de monocultivos, seria muito mais viável se fossem implantados policultivos, e ainda mais, com a presença de arvores, objetivando florestas produtivas, as chamadas agroflorestas, com produção escalonada de diferentes culturas, que produzissem a curto, médio e longo prazo.
Outro aspecto importante é a busca da autonomia da família rural. Quanto menos esta depender de energia externa (insumos, credito, conhecimento) e mais aproveitar seus recursos locais, mais próxima da sustentabilidade estará. Assim, uma tecnologia mais adequada, a serviço da sustentabilidade, deve ser de compreensão e acesso fáceis.
Mas para tudo isso, a forma de se relacionar e de abordagem entre técnico e agricultor precisa mudar. O técnico não pode mais ser um “fiscal do banco para os projetos de credito”, que policia as ações dos produtores, mas deve ser uma relação horizontal, de parceria, e essa relação deve se fundamentar na cumplicidade, confiança e franco dialogo. Quando começamos um trabalho com agricultores, acreditamos que a contribuição do técnico deve ser no sentido de tentar responder as demandas concretas apresentadas pelas famílias, e buscar soluções de maneira criativa, conjuntamente. Essa abordagem de extensão como educação, que acaba muitas vezes incluindo a pesquisa participativa como ferramenta fundamental para aprendizado e adoção da tecnologia, nos mostrou resultados muito positivos.
Um exemplo foi o trabalho que realizamos junto a agricultores no Projeto de Assentamento Humaitá, no município de Porto Acre, estado do Acre. A partir de um diagnostico, constatamos que a dificuldade em controlar o mato ou “as plantas daninhas” , como naturalmente são conhecidas no meio agronômico, era um aspecto comentado por quase todos os agricultores envolvidos. Para tentar resolver esse problema, o uso de leguminosas de rápido crescimento, também conhecidas como adubos verdes, foram sugeridas para que ocupassem o lugar das gramíneas.
Com essa sugestão, os agricultores testaram, em pequenas parcelas experimentais, diferentes tipos de leguminosas, como a mucuna-preta, a Crotalaria spectabilis, o feijão-de-porco e o feijão-guandu, e em diferentes espaçamentos, tomando o cuidado de comparar a nova proposta com a forma tradicionalmente utilizada de condução. Os agricultores observaram benefícios concretos nessa proposta e, a partir das observações em suas parcelas, concluíram a respeito do melhor espaçamento, conheceram o comportamento dessas plantas, e também observaram que o solo sob as leguminosas permanecia úmido por muito mais tempo, protegido da erosão e da insolação direta, com muito mais atividade biológica. Esses resultados positivos chegaram ao conhecimento de outros agricultores, que também passaram a adotar essa tecnologia. Assim, o próprio agricultor passa a ser o difusor do conhecimento e a tecnologia passa a ser adotada por outros, espontaneamente.
As tecnologias que devemos propor devem ser a favor da vida e não da morte, quando a estratégia é o combate a natureza. Estaremos sempre lutando contra a natureza, contaminando o meio, e o agricultor continuara pobre e desestimulado, enquanto não compreendermos que os sistemas agrícolas são agroecossistemas que seguem leis naturais como a sucessão natural, que a biodiversidade é fundamental, assim como as interações entre os seres vivos. Ao utilizarmos as plantas de rápido crescimento para substituir as gramíneas, estaremos utilizando uma estratégia da própria natureza e damos oportunidade para que ela trabalhe pelo agricultor. É assim que vejo tecnologia e não, por exemplo, o desenvolvimento de um substancia sintética, altamente poluente, que, para sua obtenção, gasta-se milhões de dólares.
Depois de se testar o uso das leguminosas visando a redução de mão-de-obra ou herbicidas para o controle das gramíneas nas entrelinhas das culturas perenes, como café e pupunha, plantados em monocultivo, financiado, surgiu a reflexão de que apenas o uso das leguminosas não seria suficiente, pois teriam que ser semeadas ano apos ano e o monocultivo, de qualquer maneira, estaria susceptível ao “ataque de pragas” e dependente de adubo químico. Analisando-se o funcionamento de uma floresta que está constantemente se renovando, através de abertura de clareiras e cicatrização pela sucessão natural, compreenderam que as plantas cultivadas, de ciclo mais longo, naturalmente, também faziam parte do contexto de uma floresta e que se desenvolvem melhor quando acompanhadas de outras plantas. Testando em suas pequenas parcelas experimentais, os agricultores confirmaram que o manejo da regeneração natural, valorizando-se aquelas plantas que antes eram consideradas mato, hoje evita capina e, apenas com podas, estimula o desenvolvimento das plantas e intensifica a ciclagem dos nutrientes no sistema.